“Os Auxiliares” – os profissionais esquecidos
Ao longo da nossa experiência de formação temos tido oportunidades únicas de conhecer inúmeras instituições de apoio à terceira idade, os seus profissionais e realidades.
Este artigo pode ser lido como uma carta aberta de reflexão às necessidades que temos encontrado nos auxiliares de serviços gerais, auxiliares de lares e centro de dia, auxiliares de unidades de cuidados continuados e integrados. Pretendemos, com estas ideias, valorizar o esforço emocional e físico em que estes profissionais se encontram e torná-los conscientes das suas necessidades, para carregarem no sinal STOP antes de se esgotarem, para saber pedir ajuda e para terem – do outro lado – outros profissionais que os saibam atender.
A si, que cuida tanto dos utentes:
Aprenda a fazê-lo com cuidado: o seu corpo fica esgotado em tarefas de higiene, arrumação, alimentação. A cada vez que ajuda a deslocar essa pessoa, a cada cem vezes que se tem de dobrar, a cada vez que a sua pele sofre com os produtos de limpeza, a cada vez que limpa fezes, leva roupa, ajuda a comer a sopa no meio do cansaço e rabugice. A cada vez que sabe que o tem de fazer dezenas de vezes. Seguidas. Todos os dias. Muitos meses. Muitos anos.
Aprenda a ouvir as suas emoções, para se lembrar que é mais importante do que as tarefas que faz. Você não é só o que tem de fazer, cumprir e limpar. É uma pessoa e essas pessoas de quem cuida querem ver a sua pessoa! Nós não somos robots, nem é justo pedirmos para ser. Regular as suas emoções não é escondê-las, fingi-las ou negá-las. As emoções vão para algum lugar do corpo, e da memória e da nossa história, quando não são valorizadas.
Dê valor ao que sente e ao que é. Está mais do que investigado que a relação de cuidados traduz mais do que os seres humanos dão de si, do que propriamente as técnicas de cuidados que usam.
Reconheça, e dê valor, de como é diferente esta relação de cuidar de outras tantas (cuidar de uma criança, no pré-escolar é lidar com a vida, a descoberta, a novidade e a curiosidade; cuidar de um idoso é pensar no fim de vida e no que pensa dela e no sofrimento que pode existir). Segundo Papadotou (2009) existem pelo menos quatro aspectos que tornam esta relação de cuidados diferente de outras: a exposição diária à consciência da morte e da mortalidade; o confronto com a inevitabilidade do sofrimento VS potencial de crescimento e mudança na nossa vida; a experiência de um sentido alterado do tempo (quando vivemos experiências de perda e de sofrimento diariamente até o tempo e o sentido da vida podem ser questionados); o intenso envolvimento no relacionamento de cuidar.
Não se esqueça que trabalha com pessoas que estão a envelhecer e a morrer. Que é natural quererem conversas francas sobre isso. Quererem rever o sentido da vida. Quererem ser tratadas com dignidade e não como crianças que têm de ser protegidas do sofrimento (diário, que elas vêm que é real!). Quererem falar do medo e da alegria. Chorar e rir. Ter espaço para acontecer, de forma verdadeira.
Podem ter recados a deixar, pedidos a fazer, segredos a partilhar.
Que ouvirem “deixe lá isso” é a maior porta fechada a uma alma que quer comunicar.
Não tenha medo: ampare cada palavra, cada janela aberta.
Às vezes fechamos essas portas por medo… Muito medo, por eles e por nós.
Por isso, pesquise pelas suas estratégias de protecção e olhe para elas com compaixão e desafio. Todos temos necessidade de nos proteger do que magoa, do que cansa, do que consome. Todos o fazemos, uns com mais estratégias de evitamento da realidade e da dor (desviando, disfarçando, brincando, distraindo) e outros com estratégias de maior contacto emocional (falando disso, perguntando mais, chorando, lembrando, precisando parar). Na verdade: ninguém aguenta estar sempre em contacto com as realidades dolorosas, mas também não podemos estar sempre a evitá-las pois isso trará também um custo grande (agora ou mais tarde).
Descubra, e valorize a sério!, que está a trabalhar diariamente envolvida/o em muitos lutos: o luto antecipatório (de quem vê partir, de quem vê adoecer mais, de quem vê envelhecer mais), o luto preparatório (o que todos, perante o nosso fim de vida, fazemos ao olhar para o que vivemos e ao perspetivar o nosso fim) e o luto pós-morte (tudo o que fica dentro de nós, e entre nós, depois de morrer aquele utente/aquele familiar).
Nestes lutos intercruzados ainda ficam os seus: as suas dores, a sua história, a sua vida pessoal, as suas dificuldades, os seus medos e tristezas, as suas perdas. Aquelas com que vai lidando todos os dias, ao mesmo tempo que trabalha. Ao mesmo tempo que cuida da dor do outro. Ao mesmo tempo que olha outras famílias em sofrimento. Ao mesmo tempo que cumpre tarefas e horários. Ao mesmo tempo que se tenta proteger de tanta intensidade emocional.
Cuidado com a fadiga de compaixão: esta é mesmo o cansaço de sentir, de ajudar, de cuidar e estar atento. Surge na escala do desgaste e da entrega, surge no pico de todo o acto de cuidar do outro e ao mesmo tempo gerir emoções e perdas.
E, ainda, cuidado com o trauma cumulativo: gota a gota vai acumulando dificuldades, esforços acrescidos, perdas de utentes, perdas pessoais, mais um pequeno esforço, mais uma desvalorização profissional, mais um utente a ser reanimado, mais uma má noticia para dar, mais um telefone para o INEM, mais…mais…mais…
Ser pessoa, cuidando de pessoas em sofrimento, é a ferramenta mais poderosa de relação. E, ao mesmo tempo, o que mais a ode vulnerabilizar.
Faz falta criar grupos de suporte e prevenção de burnout.
Faz falta dinamizar mais acções de formação, devidamente valorizadas e incentivadas por todos.
Faz falta criar suportes terapêuticos aos profissionais de ajuda.
Ana R. Santos
Psicóloga Clínica /Formadora
Especialização na área do luto
Para saber mais…
- Chochinov, H.M. et all (2005). “Dignity Therapy: A Novel Psychotherapeutic Intervention for Patients Near the End of Life”. Journal of clinical oncology. Vol. 23, number 24
- Hennezel, M., & Leloup, J. (1999). A arte de morrer: Tradições religiosas e espiritualidade humanista diante da morte na actualidade (2ª ed.). Petrópolis: Editora Vozes.
- Papadatou, Danai. In the Face of Death Professionals Who Care for the Dying and the Bereaved. New York: Springer Publishing Company, LLC. 2009
- Rando T.A. (1986). Loss and anticipatory grief. Lexington Books.
- Jennifer R. Day and Ruth A. Anderson (2011). Compassion Fatigue: An Application of the Concept to Informal Caregivers of Family Members with Dementia. Nursing Research and Practice.
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