A presente carta foi escrita por uma pessoa em luto.
Não interessa o género, a raça, a idade ou outros fatores de identificação pessoal. O que importa é sentir o teor da mesma e aquilo que esta pessoa em luto procura nas suas necessidades relacionais.
É uma carta de psicoeducação, que nos ensina a olhar para o outro e esperar o que podemos oferecer sobre aquilo que a pessoa em luto mais precisa.
É uma carta de amor, que nos remete para a necessidade de ligação contínua e de integração das dimensões da dor no processo de luto, respeitando a tolerância que a pessoa em luto tem a essa mesma dor e o caminho que ela precisa de fazer, a seu tempo, com os seus custos e benefícios.
É uma carta de esperança, que nos incita a saber olhar para o futuro que, apesar de não vivido (de forma relacional com a pessoa falecida), poderá ser transformado em rituais de contacto com a realidade da perda que poderão facilitar a recordação e a integração simbólica da vinculação afetiva.
É uma carta de respeito.
É uma carta de alerta: como posso ajudar se souber ouvir o que o outro precisa?
No final da leitura desta carta (podem ler mais do que uma vez), fechem os olhos e pensem no que gostariam de dizer a esta pessoa, imaginando que ela vos tinha entregue a carta dirigida a vós.
“Como é que me podes ajudar? (1)
“Por favor, fala comigo sobre o meu ente querido, apesar de ele já ter partido. É mais confortável chorar do que fingir que ele nunca existiu. Eu preciso de falar sobre ele, e preciso de o fazer diversas vezes.
Sê paciente com a minha agitação. Nada parece seguro no meu mundo. Sente-te confortável com o meu choro. A tristeza atinge-me como que em ondas, e eu nunca sei quando é que as lágrimas podem correr. Senta-te apenas comigo em silêncio e segura a minha mão.
Não me abandones com a desculpa de que não me queres incomodar. Não podes compreender o meu pesar. O meu mundo é doloroso, e quando tens demasiado receio de me ligar, visitar, ou dizer alguma coisa, abandonas-me no momento em que eu mais preciso de atenção. Se não souberes o que dizer, simplesmente aparece, dá-me um abraço ou toca-me no braço, e gentilmente diz ‘Sinto muito!’. Até podes dizer ‘Eu simplesmente não sei o que te dizer, mas importo-me, e quero que o saibas!’
Só porque te pareço bem, não significa que eu esteja bem. Pergunta-me como é que eu me sinto apenas realmente se tiveres tempo para o descobrir. Eu não sou forte. Estou simplesmente anestesiado. Quando me dizes que eu sou forte, eu sinto que não me vês.
Eu não vou recuperar. Não é uma constipação ou uma gripe. Eu não estou doente. Estou em luto e isso é diferente. O meu luto pode começar apenas seis meses após a morte do meu ente querido. Não penses que o terei ultrapassado dentro de um ano. Porque eu não estou apenas a sofrer pela sua morte, mas também pela pessoa que eu era quando estava com ele, a vida que partilhámos, os planos que tínhamos de ver os filhos e netos a crescer, os lugares onde nunca chegámos a ir juntos, e as esperanças e sonhos que nunca se irão concretizar. O meu mundo inteiro despedaçou-se e eu nunca mais voltarei a ser o mesmo.
Eu não estarei sempre a sofrer tão intensamente, mas eu nunca esquecerei o meu ente querido e em vez de recuperar, eu quero incorporar a sua vida e o seu amor no resto da minha vida. Ele é uma parte de mim e será sempre, e, por vezes, irei lembrar-me dele com alegria e outras vezes com uma lágrima. Ambas estão ok.
Eu não tenho de aceitar a morte. Sim, eu tenho que compreender que aconteceu e que é tudo real, mas existem algumas coisas na vida que simplesmente não se aceitam.
Quando me dizes o que eu deveria fazer, então sinto-me ainda mais perdido e só. Já me sinto suficientemente mal por o meu ente querido estar morto, por isso, por favor, não o tornes pior dizendo que eu não estou a fazê-lo da maneira certa.
Por favor, não me digas que eu consigo arranjar outro ou que devo começar a sair outra vez. Eu não estou preparado. E talvez não queira! E além disso, o que é que te faz pensar que as pessoas são substituíveis? Não são! Quem quer que venha a surgir será sempre alguém diferente.
Eu nem sequer consigo entender o que significa quando dizes ‘Tens de continuar a tua vida!’. A minha vida está a continuar, eu fui forçado a assumir muitas novas responsabilidades e papéis. Pode não parecer estar da maneira que pensas que deveria. Isto irá levar tempo e eu nunca mais voltarei a ser o meu velho eu outra vez. Portanto, por favor, simplesmente ama-me como estou hoje, e sabe que com o teu amor e suporte, a alegria irá lentamente regressar à minha vida. Mas eu nunca irei esquecer e irão sempre existir momentos em que irei chorar.
Eu preciso saber que te preocupas comigo. Eu preciso de sentir o teu toque, os teus abraços. Eu preciso simplesmente que estejas comigo, e preciso de estar contigo. Eu preciso de saber que tu acreditas em mim e na minha capacidade de passar pela minha dor à minha maneira e no meu próprio tempo.
Por favor, não digas ‘Telefona-me se precisares de alguma coisa’. Eu nunca te irei telefonar porque eu não faço a mínima ideia do que preciso. Tentar adivinhar o que poderias fazer por mim exige mais energia do que aquela que eu tenho.
Por isso, em antecipação, deixa-me dar-te algumas ideias:
- Traz comida ou um filme para vermos juntos;
- Envia-me um postal num dia festivo, no aniversário dele ou da sua morte, e assegura-te que mencionas o seu nome. Não podes fazer-me chorar. As lágrimas estão cá e eu irei amar-te por me dares a oportunidade de as verter porque alguém se preocupou o suficiente comigo para chegar até mim neste dia difícil;
- Convida-me, mais do que uma vez, para te fazer companhia num cinema, almoço ou jantar. Eu posso dizer que não à primeira ou até durante algum tempo, mas, por favor, não desistas de mim porque algures no caminho eu estarei pronto, e se tiveres desistido aí eu estarei realmente só;
- Compreende o quão difícil pode ser para mim estar rodeado por casais, ir sozinho a eventos, ir para casa sozinho, ou sentir-me deslocado nas mesmas situações em que me costumava sentir tão confortável.
Por favor, não me julgues agora – ou penses que me estou a comportar de forma estranha. Lembra-te que eu estou de luto. Poderei até estar em choque. Eu tenho medo. Poderei sentir uma raiva profunda. Poderei, até, sentir culpa. Mas acima de tudo, eu estou magoado. Estou a experienciar uma dor como nenhuma outra que tenha sentido antes e que não pode ser imaginada por ninguém.
Não te preocupes se pensares que eu estou a ficar melhor e depois, de repente, pareça voltar para trás. O luto faz-me comportar desta maneira, por vezes. E, por favor, não me digas que sabes como eu me sinto, ou que está na altura de seguir com a minha vida. O que eu preciso agora é de tempo para o meu luto.
Acima de tudo, obrigado por seres meu amigo! Obrigado pela tua paciência! Obrigado pelo teu carinho! Obrigado pela tua ajuda, por compreenderes! Obrigado, até, por rezares por mim! E recorda-te, daqui a uns dias ou anos, depois da tua perda – quando precisares de mim, como eu precisei de ti – eu irei compreender. E, nessa altura, eu irei e estarei também contigo.”
Victor Sebastião
(1)Carta de análise e reflexão ao II Curso de Terapeutas do Luto da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (2012-2017)
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