Reflexões sobre o luto

O(s) dilema(s) e a culpa no luto

Um processo de luto, para além da sua individualidade e complexidade, geralmente, apresenta dois fatores quase sempre comuns: dilemas e culpa.

Podemos assumir, perentoriamente, que a culpa é a emoção de resposta a um dilema relacional vivenciado aquando de um processo de luto.

A culpa, geralmente, surge quando tomamos consciência das nossas limitações enquanto pessoas.

Sentimos culpa num processo de luto porque não dissemos ao outro o quanto o amávamos; não o visitámos tantas vezes quanto desejámos; proferimos uma ‘má resposta’ numa determinada ocasião que nos causou arrependimento, mas sobre a qual não pedimos perdão; não nos apercebemos da gravidade da situação de saúde de um ente querido que acabou por falecer; ou porque tomámos um conjunto de decisões (durante o processo do morrer e da morte) que agora nos pesam na consciência e nos corroem, dificultando a integração plena e saudável do luto.

Devemos aceitar a culpa como emoção e validar os motivos que a sustentam. Geralmente, estes motivos implicam aquilo que se fez e o que se desejaria ter feito, quase como que fantasiando uma outra realidade que não aquela a que o enlutado foi obrigado a enfrentar: a morte de alguém que era tão especial e importante para si.
    
“O meu filho costumava dizer que, quando morresse, queria ser cremado. (...) Após morrer (morte inesperada motivada por doença oncológica galopante), foi essa a decisão que tomámos: iria ser cremado, conforme era o seu desejo em vida. Mas, hoje, não sei se tomei a melhor opção. Custa-me tanto saber que ele foi cremado.” (Testemunho de uma mãe sobre o filho falecido)

O dilema acima descrito acarreta a culpa sentida por esta mãe. Há um desejo latente de voltar atrás no tempo e mudar a decisão tomada. Como se essa decisão pudesse suavizar a dor que esta mãe sente por ter perdido o seu filho e por sentir que é da sua responsabilidade decidir, agora, a forma como o seu filho deveria ser inumado.

O conjunto de decisões a tomar aquando da morte podem, no futuro, significar o surgimento de dilemas que podem, por sua vez, complicar a integração saudável de um luto.

Aqui, neste testemunho, a escolha pela forma de inumar o corpo do filho está a contribuir para a manutenção da culpa como resposta à dor desta mãe. O pensamento ruminante é uma caraterística fugaz comum que leva o enlutado a andar num ciclo vicioso e que, constantemente, coloca em cheque as decisões que tomou em determinada circunstância, o que provoca desgaste emocional até porque gera uma sensação de impotência por não se poder alterar o passado.

Neste testemunho, podemos pensar que a decisão pela cremação ter sido feita com base no desejo do falecido pode potenciar um recurso que esta mãe utilizará como forma de dar expressão à sua dor e expressar a culpa dirigindo-a para fora de si (“A decisão foi do meu filho e eu respeitei-a”). Mas podemos, também, pensar que a não possibilidade de escolha por parte da pessoa enlutada pode levar a uma culpa autodirigida (“Era o meu dever de mãe decidir como enterrar o meu filho”). Qualquer uma das formas de sentir e gerir a culpa são legítimas e válidas, apesar da culpa  autodirigida acarretar maior custo e maior sobrecarga emocional. Na culpa autodirigida, conseguimos validar os motivos desta culpa, pois a cremação, segundo a mãe, reduziu a cinzas o corpo do filho (o que contrariou a necessidade de enterramento dentro da urna e em sepultura de forma convencional, como era desejado por esta mãe). Após a validação da culpa, surgem outras emoções, nomeadamente, o medo como forma de reação à necessidade de não esquecer o filho, de aceder às boas memórias e recordações vividas com ele, havendo uma clara sobreposição de associar a cremação e o desaparecimento do corpo do filho às memórias e recordações que necessitam de ser mantidas e geridas dentro de um futuro não vivido de incompletude.

 

Victor Sebastião

 

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