Reflexões sobre o luto

Relembrar é viver o luto

“Quando ela estava viva, costumava perguntar-lhe se as calças que eu tinha escolhido para vestir combinavam com a camisa. Agora que morreu, costumo fazer a pergunta na mesma. Sempre fui desorganizado (à minha maneira), e agora penso que ela gostava de ver que aprendi algo nesta relação tão longa, quase 50 anos. Faz-me bem e faz-me sentido pensar que ela ainda se importa comigo.” (Testemunho de um viúvo, numa tertúlia sobre o luto)

A manutenção da relação simbólica representa a necessidade das pessoas em luto manterem certas rotinas relacionais com a pessoa falecida. Esta estratégia explicita uma tarefa do luto que, no testemunho relatado no início deste post, justifica o diálogo com o falecido como forma integrada de obter conforto e proteção. A sensação de presença pode trazer segurança aos enlutados, em que a continuidade da ligação afetiva é mantida de forma simbólica. Tudo isto permite ao enlutado entrar em contacto com a realidade da sua perda e isto pode contribuir para a sua autodefinição (quem sou eu agora que estou sem ti?). Alguns mecanismos de proteção conscientes sustentam esta tarefa de luto de manter uma relação simbólica com o falecido: o mimetismo, a fidelização, a mumificação ou a idealização. No mimetismo, pode haver a necessidade do enlutado adotar certos comportamentos ou atitudes que pertenciam ao falecido. Na fidelização, há uma espécie de obrigação em manter certas rotinas focadas no falecido como forma de o respeitar e honrar. Por vezes, o falecido ainda dá instruções que a pessoa em luto deseja ver cumpridas. Na mumificação, há a necessidade de manter os espaços e objetos ou pertences do falecido imutáveis. Por vezes, de forma mais patológica, pode haver a crença de que o falecido possa voltar (o que justifica, em alguns casos, o desejo de reencontro). Na idealização, existe uma necessidade, por parte do enlutado, de tornar perfeita a pessoa falecida. Claro que estes mecanismos de proteção têm benefícios e custos para a pessoa em luto. Importa focar os benefícios e entender que os mecanismos têm a função de dar proteção e segurança ao mundo interno do enlutado, assim como ajudar a mediar a interação com o mundo que o rodeia. A manutenção da relação simbólica com o falecido pode ajudar o enlutado a integrar as dimensões do seu luto, tais como:

  • Ajuda a manter as recordações e integrar os aspetos relacionais positivos, que dão sentido à trajetória de um luto normal;
  • Ajudam a manter certos comportamentos que direcionam as necessidades do falecido de procurar conforto no falecido;
  • Ajudam à autodefinição, pois o enlutado pode assumir algumas responsabilidades do falecido e isso encoraja ao investimento na vida;
  • Ajudam ao diálogo com o falecido no sentido de manter o vínculo afetivo contínuo e aceder ao contacto com a realidade da perda;
  • Ajudam à manifestação somática de sensações reguladoras em que pensar sobre o falecido pode ajudar a controlar estados de ansiedade;
  • Ajudam à expressão das emoções. Por isso, no luto é perfeitamente natural que a pessoa enlutada necessite de manter viva a recordação da sua história de vida com a pessoa que faleceu e que não exista disrupção ou um corte com essas recordações. Na sua história de vida com o falecido, a pessoa em luto relata as partes de si que necessitam de ser integradas, compreendidas, protegidas e expressadas. E é com base nesta história de vida que podemos compreender como podemos ajudar e que respostas podem ser mais adequadas porque ao ouvirmos a história de vida, acedemos às necessidades relacionais da pessoa em luto.

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