Reflexões sobre o luto

Carta ao Menino Jesus

Carta ao Menino Jesus

 

Este texto é ficcionado, baseado no trabalho com muitos adultos que aprenderam a esquecer a criança que já foram e que se deixaram levar pela força do rio de ser adulto.

Este texto lembra-nos que podemos todos encontrar alguma paz se voltarmos ao colo mais antigo de nós mesmo. Aquele que ainda está no nosso poder.

Pode ser o Menino Jesus, o Pai Natal ou o Universo. O pai, o filho, o irmão que já não está.

 

Menino Jesus quero pedir-te tantas coisas que nem sei como começar…

Talvez precise de me lembrar de quando pensava em ti sem estes medos e cansaços da vida de crescido. Talvez precise de me lembrar de como era bom sonhar com as prendas e viver a certeza de que os grandes iriam estar sempre perto, a cuidarem bem. Talvez precise de me esquecer de quando não me cuidaram como precisava. Talvez precise de dar colo a estas memórias que martelam. E talvez precise de abraçar a dor de não ter agora tantas dessas pessoas, desses momentos, desses sonhos de liberdade.

Menino Jesus, acho que na verdade te queria pedir para não ter perdido as “pessoas que me deram a vida”. “Para não perder a minha mulher”. “O meu irmão gémeo”. “A minha filha”. A “minha avó” mesmo quando ela já era velhinha nos ossos e na cabeça. É que há pessoas… menino Jesus, que tu me arrancaste do peito, do chão, do tecto e do corpo… e os adultos não me diziam que isso poderia acontecer… (Olha, já agora, peço-te para ensinares esses adultos a serem mais verdadeiros!)

Acho que te queria pedir para não ter de me cansar tanto a contar o dinheiro, a gerir o trabalho, a perdoar quem me magoou e a ter esperança em dias que foram tão escuros.

Menino Jesus, acho que na verdade queria pedir-te para me manteres ali, naqueles lugares onde eu ainda crescia cá dentro e também de altura. Ali: na borda da lareira, mesmo que tivesse a meia rota. Na ponta da mesa das crianças, mesmo que os adultos discutissem durante o ano. Na festa de ano novo com os amigos, onde o futuro era nosso e nos sentíamos cheios de poder. Ali: onde eu ainda sentia que queria crescer e ser maior.

Menino Jesus… preciso que me lembres que posso ainda crescer mais. Não só no Natal, nem nas férias, nem nos feriados. Posso crescer quando me lembrar de mim, quando contar as minhas histórias sem vergonha ou medo de chorar. Posso crescer quando tirar fotografias e sorrir porque são todas diferentes. Posso crescer quando faço as pazes com alguém. Posso crescer quando abraço sem barreiras e quando como todos estes doces sem culpa. Posso crescer quando deixo espaço dentro de mim (não tem de ser na mesa) para os que me fazem falta. Posso crescer quando me permito ser feliz e alegrar com as luzes de Natal, mesmo que me rodeie de uma família incompleta. Mesmo que saiba que mastigamos a saudade entre garfadas de bacalhau.

É isso, menino Jesus: ajuda-me a ser menina outra vez.

Aquela que não tem todos como tinha antes, que se calhar tem o corpo mais cansado e alguns desânimos acumulados.

Se me ajudares a ser menina outra vez prometo que vou lembrar os outros disso também. É que essas forças estão escondidas em cada um e esquecemo-nos, tantas e tantas vezes, disso mesmo.

 

Autora:

Ana R. Santos

Psicóloga/Formadora

Especializada na área do Luto