Reflexões sobre o luto

“Em busca do tempo perdido”

“Em busca do tempo perdido”

- A procura no processo de luto

 

Este quer ser um texto sobre a fome imensa de procurar o que se perde. Quem se perde. E o para quê da procura. E quando. E como. E o sossego de parar.

Este quer ser um texto para retirar a crítica que se faz a quem está em luto “tens de mudar o quarto, já passaram uns meses”, “ela só fala dele… já cansa”, “parece que agora só quer fazer como o irmão fazia”.

 

 

Quando perdemos a carteira o que fazemos? Procuramos, perguntamos, vemos de novo, procuramos melhor. Mais e mais. Uma outra vez. No meio gerimos a ânsia de encontrar e o medo do que pode ter acontecido. Imaginamos os problemas que virão...

Procurar o que se perde é o movimento natural, e esperado.

Procurar quem se perde é também isso. Um movimento cheio de caminhos: uns mais pelo comportamento, outros mais internos e escondidos com o que se pensa e sente, outros ainda mais disfarçados pelo corpo que dá pistas teimosas e nos causa “incómodo”.

Por isso, há os que procuram contando histórias, os que procuram revisitando lugares e hábitos, os que procuram mantendo objetos e móveis e roupas, os que procuram pensando, ruminando, revendo, questionado. Os que procuram imitando. Os que procuram mantendo a rotina como se ninguém ali faltasse. Os que procuram o tempo, o passado e a vontade de o ver ser ainda presente.

A memória e a procura andam de mãos dadas: procura-se porque a memória não chega ou nem se suporta; procura-se porque se quer encontrar; procura-se, porque a mentalização da realidade da perda não se faz num dia. Num momento. Num ritual. Vai-se fazendo… a cada procura que não encontra o que quer. É nesse barco que estão as pessoas em luto, cada uma no seu tempo. Um barco que oscila, que pode tremer, que segue na maré da fantasia e terá de regressar a terra.

E que importante é esse barco. Essa procura é que abre espaço à realidade que se vai acomodando para não ser demasiado bruta e rápida.

Então como será dizer a alguém que procura, o que precisa desesperadamente de encontrar, para parar? Desistimos do que precisamos? Como será impedir de procurar? Que duro será. E que falta de sintonia existe quando pedimos o que parece impossível.

Se referia, há pouco, a importância desta procura na mentalização da realidade da perda refiro, agora, a importância da procura na manutenção da relação com a pessoa perdida. Sim… é uma forma de a manter perto. O possível. Não o desejado, mas o possível, o que ainda faz acordar ou caminhar. E, nessa manutenção da relação, podemos criar pontes mais concrectas (manter objectos, inalterar o quarto, visitar o cemitério para se sentir fisicamente perto) ou mais simbólicas (pensar, imaginar um abraço, uma conversa, repetir uma receita, sentir-se protegido…).

 

Queremos, sim, que as pessoas em luto consigam caminhar para uma relação mais simbólica com quem perderam, para uma menor dependência de espaços e objetos concretos. Mas recordem-se: elas estão à procura, porque precisam. Não podem simplesmente ser obrigadas a mudar o como procuram. Podem ser ajudadas a descobrir “para que preciso tanto de procurar desta forma? O que aconteceria comigo se não o fizesse?”.

Ninguém procura para não encontrar. Enquanto procuramos só queremos afastar a ideia de que está perdido “para sempre”. Essa é a ideia que pode aprisionar as pessoas em estratégias mais difíceis, com mais custos, se se investir em lutar contra a sua verdade a todo o custo.

“Em busca do tempo perdido” é um romance de Marcel Proust, publicado por volta de 1920 e com vários volumes. Quando a avó do narrador morre, a sua agonia é retratada como um lento desfazer; em particular, as suas memórias parecem ir-se evaporando dela, até já nada restar. No último volume, O Tempo Reencontrado, o autor recua no tempo e procura tudo o que pode fazendo com que o narrador recue no tempo das suas memórias, em episódios desencadeados por recordações de cheiros, sons, paisagens ou mesmo sensações tácteis.

Quando há um tempo perdido quer-se sempre um tempo reencontrado.

E podemos reencontrá-lo, dentro de nós, simbolicamente pincelando com o cheiro do perfume, a fotografia, a peça de roupa preferida ou a praia de sempre. O que é diferente de nos perdermos na vontade de encontrar quem não regressa, da mesma forma.

 

Bibliografia

Bowlby J. Attachment and loss. Vol. 1: Separation. New York: Basic Books; 1969

Payás, A. (2010). Las tareas del duelo. Psicoterapia de duelo desde un modelo integrativo- relational. Paydós, Barcelona.

Klass, D., Silverman, P. R., & Nickman, S. ( 1996). Continuing bonds. Washington, DC: Taylor and Francis.

Volkan, V. D. ( 1981). Linking objects and linking phenomena. New York : International Universities Press.

 

 

Ana R. Santos

Psicóloga /Psicoterapeuta especializada em Luto Formadora