Reflexões sobre o luto

A importância dos adultos no luto infantil

We can’t protect children from life’s tragedies, but we can ease their journey by responding openly to their questions.

Não podemos proteger as crianças das tragédias da vida, mas podemos facilitar o seu caminho respondendo a todas as suas perguntas abertamente.

Linda Goldman

 

Quando uma criança e adolescente vivem um luto não o experienciam, nem conseguem, sem ele se interligar no luto dos adultos que a cuidam e rodeiam.

O papel dos adultos no luto dos mais novos é crucial podendo:

  1. Funcionar como espelho, quando os adultos, em esforço para gerirem a sua dor, pode parecer ficar refletido apenas nas dificuldades dos mais novos como se “fossem só esses a precisar de ajuda”, “como se fossem eles que estão tristes demais” ou, por outro lado “que parecem não fazer perguntas”. Este é o adulto atento, ansioso por ajudar mas absolutamente focado no outro sem descobrir (dói descobrir!) que podem ser também as suas fragilidades e emoções que estão a surgir em espelho.  
  2. Criar um efeito tampão, quando a criança observa o adulto a inibir o sofrimento. Quando observa o adulto a tentar proteger-se da nova realidade, com dificuldade em tolerar as conversas dolorosas, a reprimir temas, suprimir memórias, evitar as lágrimas e desviar para outras trefas focadas na funcionalidade.
  3. Assumir-se como uma ponte estável e segura criando o modelo do que é sofrer sem se inundar nesse sofrimento. O adulto que permite as perguntas, as conversas difíceis, que partilha as suas emoções reforçando a segurança de estar ali para continuar a cuidar, que mostra ser capaz de pedir ajuda e que não esconde as lágrimas (e chorar em frente à criança é, claro, diferente de estar dias seguidos na cama, ao escuro, a chorar e sem se conseguir cuidar).

Refletindo melhor sobre estas funções do luto dos adultos e pensando sobre o seu impacto na criança podemos (quase) imaginar o que do outro lado elas pensariam e sentiriam:

  1. “eu sei que fico triste… mas tu também e nem percebes que ficas desorientado com isso”, “não me apetece ir brincar hoje mas tu estás sempre a organizar coisas porque dizes que ficar em casa faz pensar mais”, “tu levas-me ao psicólogo mas tu também merecias ter alguém a ajudar-te e a deixar-te chorar”, “dizes que eu ando mais rabugento mas tu andas tão irritada com tudo!”…
  2. “não vou chorar porque tu ficas mais triste”, “não posso falar disto lá em casa porque ninguém quer!”, “vou fazer de conta que não aconteceu nada… toda a gente disfarça!”, “eu não sei dizer o que sinto… também não me ensinaram”, “toda a gente foge do assunto, parece que é contagioso”, “se é para isto mais vale chorar sozinho”, “não vale a pena pedir ajuda…”.
  3. “afinal eu posso chorar e rir quando me apetece!”, “é normal estarmos tristes, todos temos tantas saudades”, “não sou anormal por me sentir tão zangada depois do que aconteceu”, “posso contar com eles, eles ficam tristes com a conversa mas explicam-me tudo”, “não estou sozinha… todos podemos dizer o que pensamos, cada um tem a sua maneira”, “antes estava confusa mas agora que me explicaram o que aconteceu estou mais tranquila, parece que encaixaram algumas peças”…

 

Nestes adultos, mesmo que não pareça a olho nu, há algo em comum: todos, mesmo todos – cada um com as suas estratégias habituais (as que aprendeu e usou bem antes do luto, as que lhe foram ensinadas, as que treinou) – acreditam proteger assim os mais novos.

É isto que fazemos: embrenhamos por caminhos que acreditamos serem “melhores” para o outro e, ao mesmo tempo, se tornam suportáveis para nós e nos protegem (um pouco que seja) da dor.

Contudo, pelo meio do que fazemos para proteger os que amamos e a nós mesmos, vão sobrando os custos/ as desvantagens dessas estratégias. O custo de não falar sobre o assunto (quase nunca), de não olhar as fotografias e de não contar histórias sobre aquela pessoa. O custo de estar sempre atento, preocupado, quase helicóptero a rondar o outro. O custo de chorar demais, desistir das tarefas e da rotina.

Eles (os mais novos que queremos salvar da dor do mundo, da imprevisibilidade e injustiça) precisam que nós, adultos, sejamos pontes. Janelas abertas para eles. Olhares atentos e sinceros. E a sinceridade vem também na saudade mais forte, vem na resposta, vem no abraço e vem também no direito a sentirem-se felizes nas suas rotinas. Eles precisam de ver o (seu) adulto pedir ajuda, dizer que foi um dia mau, partilhar o silêncio. Precisam de ver o adulto a chorar e descobrir o que fazem para tolerar o chorar e a dor (isso é diferente de dizer “não fiques triste” ou de dizer “podes chorar”… se não sabe como fazer!). E quem diz chorar diz sorrir e recordar. Precisam de um adulto que sustente, que seja alicerce. E isso não significa ser super-herói. Significa amparar e acolher as perguntas e dúvidas, com tempo, com frases simples e verdadeiras, sem deixar os mais novos a procurarem sozinhos o entendimento.

Um dia uma menina perguntava-me com ar confuso “porque é que os adultos nunca choram?”.

O que responderiam a esta menina?

Ana R. Santos

Psicóloga/Psicoterapeuta

Formadora

 

Bibliografia

  • Christ, G. H., Siegel, K. e Christ, A. (2002) Adolescent grief: “It never really hit me… until it happend”,Journal of the American Medical Association, 288 (10), 1269-1279.
  • Erskine, R., Moursund, J., & Trautmann, R. (1999). Beyond Empathy: A Therapy of Contact-in Relationships. Routledge.
  • Kovács, M.J. (1992). Morte e Desenvolvimento Humano (pp. 1-14,     48-90). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Kroen, D.W.C. (2011). Como ajudar as crianças a enfrentar a perda de um ente querido – Um guia para adultos. Planeta