Lamento informá-lo que não há mais que possamos fazer. Já esgotámos todas as possibilidades de tratamento disponíveis. Neste momento, o que podemos fazer é...
A partir daqui não ouvi mais nada. Não quis acreditar. Como assim?
Quando envelhecemos ou recebemos notícias difíceis que nos tiram a esperança de continuar abrem-se muitas gavetas dentro de nós: pensamentos, emoções, desejos por concretizar, recordações. Quase que se morre como se vive e isso significa que morrer é muito mais além do momento do fim. Com este texto pretendemos levá-lo para dentro do que pode ser sentir isso e descobrir toda a complexidade do luto preparatório.
Não há mais nada que possam fazer? Não é possível… depois de tudo o que tentámos, algo tem que resultar. Eu tenho que continuar a viver. Há tanto que ainda tenho que fazer. Quero ver a minha filha a casar, quero puder levá-la ao altar, quero ver crescer a minha neta, quero ver nascer mais netos, tenho direito a tudo isto! Quem se atreve a roubar-me estas possibilidades? Não, não é possível, isto não é real, a qualquer momento vou acordar deste pesadelo…
A poeira assenta. Vou conseguindo sair deste nevoeiro que esta notícia de morte antecipada me trouxe… quero saber algo mais? Que perguntas tenho eu a fazer? Ou será que as quero sequer fazer? E os meus filhos e noras… digo-lhes? Permito ao médico que lhes passe informação? Que difícil será para eles…. E os tratamentos?! Que implicações têm? Tantas decisões a tomar!
Ao longo do tempo, vou-me frustrando e revoltando com este corpo que parece ser o meu pior inimigo. Teima em não colaborar nas tarefas mais simples! Coisas que antes fazia sem sequer me aperceber…. O gerir a minha rotina, a minha higiene diária, tudo…
Tanto que já não consigo fazer… estas pernas que não obedecem, o estômago, a digestão que não me dão tréguas… Já não posso ir buscar a minha neta ao infantário. E se me desequilibro? Já não sou merecedor dessa responsabilidade. Se já nem consigo cuidar de mim, como podem confiar em mim (ou como posso confiar em mim mesmo) para cuidar da luz da minha vida? Espero que ela saiba o quanto a continuo a adorar e no quanto quero continuar a fazer parte da vida dela…
Neste pensar a doença, há tantas questões que ficam em aberto, há tanto do sentir que fica por descobrir. O confronto com as fontes de sofrimento e a consciência das perdas que se vão vivendo é essencial para ampliar a consciência do que se vai vivendo internamente. Desta forma, mais do que reagir em piloto automático aos medos e angústias, é possível responder de forma mais informada, com consciência plena das suas necessidades e do que precisa dos outros (por exemplo, em termos de comunicação com a família ou de procura de informação médica) e/ou do que precisa de fazer por si próprio.
Agora que o tempo parece que pára, dou por mim a revisitar as minha melhores e piores memórias. Os momentos mais felizes e as minhas perdas mais marcantes. Aqueles almoços entre amigos e de família. Com risadas, partilha de histórias…e quanto eles gostavam das minhas histórias… que vida rica tinha eu. Para agora estar aqui, parado, sem nada que me mova, as pernas e o coração! Como posso encontrar propósito nesta vida que já nem parece a minha… Num corpo que já nem parece o meu…. Nesta cabeça que me prega partidas, que me desorganiza o arquivo da minha vida passada e atual.
Mas, enquanto me resta alguma lucidez, apercebo-me do tanto que ainda tenho para dizer, para agradecer, para perdoar, para pedir perdão aos que mais amo. Sei que a morte não tarda, o meu corpo vai-se desligando e eu sinto-o…por mais que não queira. Quero que me recordem, com tudo o que tenho de bom e menos bom. Como um ser imperfeito, mas em constante evolução e crescimento. Quero que nunca se esqueçam do quanto os amo e amarei…e que esse amor perdura quando eu partir. Porque o amor sobrevive ao corpo!
O texto ajudou-nos a ir caminhando dentro do processo de nos depararmos com a nossa finitude. Aquilo a que se chama de luto preparatório. Fomos criando, na primeira pessoa, descrições do que faz parte deste processo: o pensar a doença, a vida e a aproximação da morte. Ao pensarmos a morte, é inevitável pensarmos a vida, a nossa história, os momentos mais importantes, o que nos gratifica e o que ainda temos a fazer por nós ou pelos outros, naturalmente, a curto-prazo. Podem ser revistas as relações familiares e sociais, os papéis sociais e perdas anteriores e aprendizagens. A tolerância a tudo o que de difícil a morte pode trazer, pode empoderar a pessoas no encontrar de um propósito não só na sua vida, mas também no seu legado, isto é, na forma como escolhe tornar-se “imortal” aos olhos e no coração dos seus mais queridos. Mas para tal, pode ser importante que não fiquem mensagens por passar, que, ao urgir o tempo, o possamos usar para reparar relações, enquanto ainda o é possível fazer diretamente com as outras pessoas.
Afinal, se na vida as pessoas não são ilhas, muito menos o são na morte, com toda a dor, mas também potencial que a sua antecipação pode trazer.
Sara Albuquerque
Formadora
Psicóloga Clínica
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