Reflexões sobre o luto

O Natal e o Luto

– “Brilha, brilha lá no céu… a estrelinha que nasceu”

 

E se o Natal não trouxer só estrelas que nascem na alegria?

E se as estrelas nascerem porque as histórias que contámos as fizeram nascer de uma perda?

E se o Natal não tiver uma mesa cheia? De gente importante, de calor, de comida e mimos.

E se o Natal não tiver presentes? Quando a presença é o que faz falta. Ou quando as faltas deixaram tantas dificuldades que nem os presentes se compram mais.

E se o Natal não tiver crianças a abrirem os presentes? Nem aquele velhinho a adormecer cedo de mais? Nem famílias a encherem o prato tal e qual gesto de dedicação?

E se o Natal não tiver luz? Colorida, entusiasmante, divertida, angelical. Porque a saudade, a tristeza, o medo, a solidão traz alguma sombra.

E se o Natal não souber ser (mais) Natal?

E se ficar tão difícil viver o Natal?

 

O Natal, o aniversário, os dias de festa marcada, a alegria dos outros, os festejos na televisão… tudo isso (e tão mais) pode martelar na saudade e fazê-la gritar.

A saudade vive-se, a cada passo do caminho. Não se vive com um princípio, meio e fim. Não se vive com fases nem prazos de validade. Mas pode sim vir recheada de outras dores mais fortes ainda: o que ficou por viver, o que gostaríamos de ter dito, o que precisávamos ter ouvido, o que gostaríamos de ter partilhado, as fotografias que faltaram tirar, as prendas que faltaram oferecer, as conversas que ficam por ter. A isto podemos chamar tarefas relacionais – tudo o que fica por concretizar/sentir na relação com a pessoa perdida – e futuro não vivido. Este futuro é tremendo, é um mar imenso que como o próprio nome indica não acaba enquanto houver quem o viva. Há sempre algo em falta, pode é não doer sempre da mesma maneira.

Quando uma família se junta para o Natal, ainda mais no primeiro depois de perder alguém, este pode ser um momento emocionalmente muito exigente. A vivência do luto, de cada um, interfere na relação entre todos e coloca grandes desafios: uns gostam de recordar, outros não conseguem, uns querem simbolizar aquela pessoa, outros precisam fugir a essa realidade. As respostas de cada um, na gestão dessa ausência e do que ela provoca internamente, também podem ser tão diferente ao ponto de gerar conflito, incompreensão, afastamento, até mágoa (“como é que conseguem estar aqui sem ele?”, “como é que decidiram não fazer Natal se continuamos cá?”). Por outro lado, o desafio pode ser precisamente o que fazer com os silêncios ou com o peso da dor e da ausência.

São muitas as pessoas que se debatem com o que fazer “no primeiro Natal”, que enfrentam esta época com medo do que vão sentir e viver, medo de não aguentar, medo de não merecerem, medo de não serem capazes de partilhar alegria, medo da culpa por sentir alegria. E claro que têm medo! Como não ter medo de experimentar algo tão intenso, como estes momentos, sem a pessoa que queremos connosco? Como não ter medo de nos desorganizarmos se o que podemos sentir é tão forte que nos absorve? Como não ter medo de chorar imenso e não conseguir parar? Como não ter medo de estar vivo se guardarmos uma experiência de trauma, avassaladora, de perda de sentido, de solidão profunda?

Como não ter medo de ter tanto medo e ficar perdido dentro desse medo?

Por vezes diz-se que o tempo cura e “uma pessoa habitua-se”. Mas isso não tem nada de rigoroso, terapeuticamente falando. A verdade é que nós temos a capacidade de nos habituarmos a coisas muito difíceis e elas não se tornam melhores por isso. A verdade é que o tempo traz apenas a repetição dos dias, traz o hábito e ajuda a que na nossa memória se guarde já o primeiro Natal sem a pessoa, o primeiro aniversário, a primeira festa – isso ajuda a guardar os primeiros dias de ausência, numa memória que procura ganhar lógica e arrumação no meio do caos e do sofrimento. A partir daí, a nossa memória tem onde ir buscar o que é “não ter a pessoa”, mas isso não traduz necessariamente menos sofrimento.

Não nos vamos iludir: vai ser mesmo difícil, porque guardamos muito cá dentro do que o Natal foi, do que o Natal deveria ser e do que significa a falta disso. O Natal será diferente do que deseja e aprender a viver, com tudo e todos os que fazem faltam, é um caminho longo.

Por isso, faça o melhor que conseguir e para isso pode ser importante: (a) estar atento a si e ao que precisa, ao que sente, ao que tem pensado; (b) imaginar-se a fazer isso “como seria se eu fosse ter com toda a família?”, “como seria se eu ficasse em casa só com duas ou três pessoas?”, “o que mudaria?”; (c) comunicar o que precisa e gostaria, se clarificar as suas necessidades pode impedir mal entendidos e poupar esforços que não é obrigado a fazer. Comunicar inclusive com os mais novos sobre como pode ser um momento difícil para todos; (d) ser tolerante, consigo e com os outros – descubra que estão todos a fazer o que conseguem com esta dor, com esta “novidade” e que isso pode ser muito diferente para cada um.

Poderá encontrar formas de simbolizar aquela pessoa e torná-la presente nesta época, como por exemplo fazendo um novo enfeite de natal. Poderá emocionar-se muito e estar preparada com muitos lenços. E poderá ter de engolir algumas lágrimas, ou fugir a algumas conversas se sentir que precisa proteger-se e “ir com calma”. Poderá escolher ainda melhor cada presente, como gesto de amor, ou não ter capacidade para nada disso.

Tudo bem. Perdoe-se e explique a quem o rodeia o que vai dentro de si. Deixe-os saber que é o seu melhor, o seu possível e deixe-os dizer também o que eles precisam.

Se calhar é isso o Natal: estarmos atentos aos outros e a nós. E a quantos mais guardamos dentro de nós. Se calhar é isso que faz o Natal especial: saber que não pode ser banal, nem ser mais um.

 

Este é um texto de reflexão pessoal, não pretende ser um texto científico.

 

Ana R. Santos

Formadora e Psicoterapeuta