Não é frequente ouvirmos falar deste conceito apesar de frequentemente nos depararmos com a morte iminente de alguém que nos é querido, quer em contexto laboral ou pessoal. Imaginemo-nos a ver morrer quem amamos… quem cuidamos... O que acontece, como é esta experiência?
De forma simples, luto antecipatório é qualquer luto que ocorre antes da perda. Contudo, a pessoa não antecipa somente a perda de alguém que lhe é querido. Numa situação de doença terminal e morte eminente, para além da perda futura da pessoa, existem perdas passadas e actuais. É no confronto com a falta da pessoa, tal como ela era antes – nos seus papéis, qualidade da relação, identidade pessoal –, que o familiar experimenta, ainda no período da doença, sentimentos de ausência, solidão e perda.
O momento em que os familiares se apercebem de que se trata de uma doença irreversível é particularmente marcante, podendo ser carregado de surpresa, choque, descrença e recusa, mesmo acompanhando a crescente degradação física do familiar. Todo o mundo se abala, há irritação, raiva, culpa, tristeza, medo da separação, ambivalência. A incerteza prevalece: face à evolução da doença, à sua capacidade para dar resposta às exigências que dela derivam, ao sofrimento do doente, à sua própria reação à morte.
O cuidador tem frequentemente que adaptar a sua vida às exigências da presença e do cuidar. Para várias pessoas, é como se fosse um tempo de espera, durante o qual apenas sobrevivem; um tempo onde não haverá espaço ou interesse pelas suas actividades anteriores ou contactos sociais. Prevalece a exposição prolongada ao sofrimento e exigências múltiplas das rotinas diárias e do cuidado ao doente, sendo difícil perceber como se podem cuidar também. Prevalecem as memórias traumáticas, associadas à contínua degradação física e da pessoa que amam e à impotência de a reverter. Muitos estão exaustos, podendo desenvolver sintomas depressivos e diminuição de qualidade do relacionamento.
E como se consegue cuidar de alguém cuja morte se antecipa? Como La Rochefoucauld disse, "Nem o sol nem a morte podem ser olhados fixamente". Para muitos, o evitamento é de facto a palavra de ordem. E por evitamento entenda-se como forma, e necessidade, de protecção. Muitas pessoas reprimem os seus sentimentos para não ficarem submersos pela sobrecarga emocional, para continuarem a funcionar ou para evitarem a sobrecarga emocional do doente. Muitos mantêm a esperança na recuperação, como forma de suportar a realidade actual, ainda que a morte possa vir a ser o desfecho. Contudo, a esperança é flutuante durante o percurso de fim-de-vida: no início, pode ter-se esperança que tudo volte ao normal, que o familiar deixe de sofrer e que a própria vida deixe de ser o caos que é agora, que o paciente continue a lutar e se mantenha saudável, que se mantenha independente... Progressivamente, a esperança dos familiares passa a centrar-se noutros aspectos: que o familiar morra tranquilamente, que possam ser capazes de aliviar o seu sofrimento, que este saiba o quão é amado e que nunca será esquecido.
O “deixar partir” não é incompatível com o reforço do vínculo, com o investimento na qualidade de vida e dos cuidados do doente. Da mesma forma, o amar a pessoa, não tem de ser incompatível com o permitir-se cuidar de si próprio, manter a sua rotina, as suas atividades, o seu bem-estar, ou mesmo com a redistribuição de papéis e responsabilidades outrora levados a cabo pelo doente. A antecipação da perda pode inclusive ser uma oportunidade para resolver aspectos pendentes da relação, para intensificar a relação com a pessoa que está a morrer, para dizer o que nunca foi dito, o quanto ama, o que sentirá falta, o que fica por fazer, o que nunca esquecerá, o tanto que aprendeu.
Ainda assim, é importante vermos o luto antecipatório como um processo complexo, individual, com tudo o que de verdadeiro e seguro existe para cada pessoa e para cada relação.
Não é uma doença, um sintoma, mas sim um processo que congrega toda a história de uma relação, antecipação do futuro e dilemas, pensamentos, emoções do momento.
Autora: Sara Albuquerque - Psicóloga Clínica; Formadora
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